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O móvel da escrita

Atualizado: 24 de dez. de 2019

Do conforto do mobiliário ao desconforto impessoal


A burocracia pesa sobre nossos ombros por ser um sistema moroso, indiferente às necessidades das pessoas reais, e pode ser sentida através das palavras de Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém: a banalidade do mal. Eichmann foi um burocrata na máquina nazista que tratava pessoas como números e metas a serem cumpridas e, como muitos dos nossos contemporâneos, destruiu sua consciência em nome da obediência cega ao Leviathan sem alma: "Talvez a natureza de toda burocracia seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens, assim os desumanizando. E se pode debater prolongadamente e com proveito o governo de Ninguém, que é o que de fato significa a forma política conhecida como bureau-cracia".


Mas a palavra bureau nem sempre significou isto em sua origem, estranhamente, está ligada ao conforto da vida. Palavras como “gótico” e “impressionismo” nasceram pejorativas, esta nasce apenas para descrever um tipo de mobiliário.


Miniatura do  Evangelho de Ebbo de Rheims. São Mateus. Antes de 823 A.D. Biblioteca Municipal de Epernay
Miniatura do Evangelho de Ebbo de Rheims. São Mateus. Antes de 823 A.D. Biblioteca Municipal de Epernay

As primeiras mesas de escrita nos mosteiros irlandeses, a partir do século V, chamavam-se scriptorium, e scriptoria, o conjunto dessas mesas numa grande sala. Havia uma mesinha apenas para leitura, o atril, hoje conhecido por um genérico "apoio de livro", seu remanescente é o suporte em que repousa a Bíblia lida nas igrejas ou nas salas das casas católicas.


Nas escolas das pequenas paróquias era possível aprender, qualquer um que quisesse podia simplesmente pedir ao pároco e já estava matriculado, gratuitamente, para aprender o Trivium e o Quadrivium. Muitos foram levados pelas mãos de seus pais, por volta dos dez anos de idade, para aprender.




Retrato de Christine de Pisan. De uma miniatura do século XV. Biblioteca dos Duques da Borgonha, Bruxelas

Tais escolas não eram, como muitos supõem, apenas para formar monges, qualquer um podia aprender, inclusive meninas — caso de Christine de Pisan, escritora e poetisa, bem como mulheres famosas de então, sobre as quais Georges Duby fala em Damas do século XII — e uma bula papal determinava a gratuidade de um ensino que hoje, após tirarmos a poeira que o iluminismo despejou sobre a Idade Média, um dos melhores ensinos, pois produziu Petrarca, Dante Alighieri e Boccaccio, as primeiras luzes do Renascimento na literatura, produziu Shakespeare e até François Villon, poeta e ladrão, todos lidos até hoje. Nestas escolas não havia scriptorium, os alunos escreviam sobre lousas individuais, treinavam, apagavam, não havia acúmulo de papel pois sequer havia papel. O aluno, alumnus — significa lactente, criança que é nutrida, nada tendo que ver com “sem luz” —, tinha que saber de cor, de cordis, de coração, a sede do sentimento, da inteligência e da memória.


Os nossos cadernos de hoje e o conseqüente desperdício de papel eram inimagináveis. O quaternus era, na verdade, uma grande folha de pergaminho dobrada em quatro e, postos um sobre o outro, costurados para formar os livros que seriam criados ou copiados um a um com belas ilustrações, as iluminuras.


Com os séculos e as escolas paroquiais, mais pessoas passaram a escrever e, após a invenção da imprensa, houve necessidade de produção de papel, visto que o pergaminho era inviável para a publicação de livros em grandes quantidades e o papiro não florescia na fria Europa. O papel, então, a partir do século XV, foi feito de restos de roupas que as pessoas jogavam na rua após usarem até gastar. Os trapeiros, coletores autônomos de lixo de então, recolhiam-nas — pois não havia serviço de recolhimento regular de lixo, uma invenção parisiense da década de 1850 —, levavam sua coleta de restos de alimentos para produzir adubo e as roupas velhas a uma usina artesanal para a fabricação do papel. Papel de grande qualidade, ao estilo do Fabriano, hoje utilizado para fins artísticos.


Livros em grandes tiragens, não mais cópias manuscritas, puderam ser publicados: Veneza foi a campeã de publicações e seu filho Aldus Manutius, inventor da edição de bolso, do tipo em tamanho pequeno a que chamou de itálico, além das terríveis e minúsculas notas de rodapé.


Mesmo com tanta gente escrevendo, os cadernos de notas ainda não eram comuns, escrevia-se sobre a folha solta. Mas é muito desconfortável deslizar a pena entintada sobre uma superfície sem maciez, da mesma forma que para nós, hoje, também é desagradável escrever com Bic sobre uma folha apenas: a tinta não sai.

Bureau Brisé. c. 1685. Alexandre-Jean Oppenordt MMA, Nova York.

Foi aí que os “ébénistes”, literalmente, ebanistas, marceneiros superespecializados que trabalhavam com o ingrato e caríssimo ébano e outras madeiras nobres, tiveram a idéia de revestir a escrivaninhas com um couro fino e macio chamado bureau. Daí em diante, diferenciou-se a escrivaninha comum, o scriptorium, da escrivaninha bureau, e o termo scriptorium para as mesas de escrever desapareceu passando a ter, futuramente, outro significado.


Secretária do Rei Luís XV. Jean Oeben e J.H. Riesener; 1760-1769. Versailles

Mais e mais, este mobiliário foi-se sofisticando até chegar na “secretária”, inventada por necessidade de Louis XV evitar olhares curiosos sobre seus papéis, podia ser fechada, ora com portas, ora com um fecho cilíndrico — ancestral das portas de lojas que se enrolam no alto —, trancada a chave, daí o nome “secretária”, com muitos compartimentos e gavetas em seu interior, inclusive secretos, para a guarda de valores. Até para viagens foram construídas, gigantescas para nossos padrões atuais de memória em chip.


Secretária. Acredita-se ter pertencido a Maria Antonieta. Victoria and Albert Museum, Londres.

Os reinados de Louis XIV a Louis XVI foram pródigos em sofisticação, sendo que algumas escrivaninhas tinham até relógio, artefato caríssimo, e castiçais laterais para as velas, também caras. Havia modelos masculinos e femininos, de muita graciosidade, em que se guardava o papel e o estojo com a pena e a tinta.


Após a revolução francesa, muito desse mobiliário foi vendido para museus do mundo inteiro, principalmente americanos e ingleses, pois as revoluções requerem muito dinheiro, sendo o mobiliário francês fabricado entre a eclosão da Revolução e a ascensão de Napoleão como imperador, extremamente simples. A Morte de Marat de Jacques-Louis David retrata o morto em frente a um caixote à guisa de escrivaninha. A sofisticação tipicamente francesa voltará apenas a partir do império napoleônico.


Escrivaninha David-Weill. Jacques-Émile Ruhlmann. C. 1920. MMA, Nova York.

O início do século XX mantém o luxo, embora bastante sóbrio, no estilo Art Déco, com tratamento artístico nas curvas e nos detalhes em prata do designer Ruhmann.


A segunda metade do século não nos livrou da burocracia, mas proporcionou a grande parte da população do planeta um nível de conforto antes restrito apenas aos nobres e, embora tenha abandonado a riqueza dos detalhes por vários motivos, não abandonou o antigo formato original nos projetos de grandes designers.

O designer George Nelson em sua criação: Action Office. 1964.
 

Autoria de Lucília Coutinho





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