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  • Foto do escritorRestauração Cultural

Sobre um conto

Ontem, em minhas aulas de Teoria da Literatura, tratei de algumas formas de crítica literária que falharam (e falham) ao se proporem avaliar os textos literários. E, durante a explanação, ocupei-me de um conto para deixar claro que uma crítica que se pretenda interessada em emitir um parecer sobre textos de tal natureza, devem eximir-se de ancoragens na biografia do autor e nos mitos em torno dessa personalidade. E assim tratei de ocupar-me de uma análise propriamente literária do conto Sete anos e mais sete, de Marina Colasanti.

A arte de contar exige talento, certamente. E talento é habilidade fora do comum para executar aquilo que outros perfazem a expensas de mais tempo, de mais treinamento, da ajuda - não rara - de mestres e conselheiros. Em geral, o talento é plenamente reconhecido pelo bom acabamento da peça, que nada ou quase nada deixa por concluir ou retocar. Mas há quem ultrapasse os parâmetros reconhecíveis do talento - habilidade incomum e economia de tempo na execução de uma obra - e chegue aos da genialidade. Ora, a genialidade nem sempre é perceptível pelo acabamento completo e irretocável da obra. Nem da celeridade em sua execução. A Mona Lisa levou três anos para ser feita. E o encomendador não ficou satisfeito com o resultado, julgando a obra como inacabada. Pode ser que essas informações já tenham sido rebatidas, isso eu não sei. No plano literário, das obras geniais - e inacabadas - que li, aponto Bouvard e Pécuchet, de Flaubert (uma crítica devastadora do conhecimento ao mesmo tempo tacanho e enciclopédico por atacado, uma mania na França dos tempos do escritor) e O processo, de Kafka (que faz brotar um terrível pesadelo a partir do burocratismo asfixiante e totalitário dos fins da Belle Époque e já com um pé nos regimes genocidas e tecnocráticos do século XX, numa escrita indene a antirrealismos). Nas obras geniais o resultado não advém do manejo talentoso de técnicas, mas da invenção de novas técnicas ou de um novo manejo das velhas. O gênio não necessariamente abole a tradição, mas lida com ela de modo a acrescê-la com contribuições imprevisíveis. Justamente essa imprevisibilidade causa desconforto no receptor. Claro, há obras geniais que provocam impactos que, apesar do desconforto, são vividos com acentos de prazer estético. Na verdade, obras facilmente dadas ao prazer do consumo são aquelas mais votadas ao esquecimento, de tão enquadradas na previsibilidade de seu meio e fim. Uma obra literária genial não precisa ser "vanguardista" no sentido de trazer o inédito em termos de dizer, pois uma escrita genial pode revitalizar o arcaico. Eça de Queiroz, por exemplo, que adere aos padrões do realismo literário de sua época, também se destaca ao escrever contos cuja dicção toca o modo de contar dos narradores tradicionais. Assim, o autor de Os Maias e A Relíquia também é aquele de O suave milagre e O defunto, contos em que não só a história se dá em épocas secularmente pretéritas, mas o próprio discurso se diz com uma forma de sabor pretérito.

O conto Sete anos e mais sete, de Marina Colasanti, a meu ver é genial. A narradora, apeada numa dicção aproveitada aos contos de fadas tradicionais, rompe com a ênfase - comum nesses contos - dada à própria história, ao tom anedótico, ao inusitado das cenas e dos acontecimentos, para refletir sobre o próprio dizer. Na frase inicial do conto, por exemplo, lemos: "Era uma vez um rei que tinha uma filha". Ora, os substantivos "rei" e "filha" aparecem introduzidos por um artigo indefinido, marca própria do fato de aparecem na frase inicial do texto. Ninguém, até aí, sabia da existência dos referentes desses substantivos. De modo que, em querendo dar continuidade à informação inicial, o narrador, para retomar "rei" e "filha", deveria substituir "um" e "uma" pelos definidos "o" e "a", como, por exemplo, numa frase do tipo: "O rei sempre passeava nos jardins do castelo com a filha". Porém, o narrador passa à frase seguinte, jogando com a diferença entre "um" (artigo indefinido) e "um" (o numeral). Assim, se na frase inicial, podemos contar com a possibilidade de o rei ter uma filha sem deixar de ser pai de outra ou outras, na segunda frase já nos deparamos com a informação de a princesa ser a única filha do rei: "Não tinha duas, tinha uma, e como só tinha essa gostava dela mais do que de qualquer outra". Um golpe genial na tessitura discursiva do conto: o narrador se vale da homonímia, em português, entre o artigo indefinido e o numeral cardinal para fazer avançar o texto, com uma informação nova: a princesa era a única filha do monarca. Esse dado pertence à história, mas veio à luz sem dispensar um dado da língua!

Mas, como eu falara, a obra genial não precisa trazer temática nova. E o narrador de Sete anos e mais sete mergulha no legado de uma tradição em que encontramos os sete anos e mais sete semanas que Jacó, nas páginas do Gênesis, levou para receber a mão de sua querida Raquel em casamento. Primeiramente, Labão, pai da moça, aceitou dá-la em casamento ao rapaz, à custa de que este lhe trabalhasse por sete anos no pastoreio das ovelhas (interessante é que, em hebraico, Raquel significa "ovelha"). Ao cabo, porém da empreitada, Labão empurra Lia, a filha mais velha e encalhada, para casar com Jacó, em vez da pretendida Raquel. E, assim, o noivo iludido começa por labutar mais sete semanas por sua "ovelha". Essa história foi aproveitada por Petrarca, o grande poeta florentino do Trecetismo italiano, que a incrustou no seu Il Canzoniere, obra que inovou a lírica ocidental inteira até à chegada do Romantismo, já nos finais do século XVIII. E, até os albores da poesia romântica, houve petrarquianos que não hesitaram em valer-se da peripécia bíblica de Jacó, Raquel e Labão. Um deles foi o nosso Camões, com seu prestigioso soneto:


Sete anos de pastor Jacob servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; mas não servia ao pai, servia a ela, e a ela só por prémio pretendia.


Os dias, na esperança de um só dia, passava, contentando se com vê la; porém o pai, usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia.


Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assi negada a sua pastora, como se a não tivera merecida;


começa de servir outros sete anos, dizendo: - Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida.


Em Petrarca, o assunto já aparecera na canção da qual extraímos os versos:


Per Rachel ò servito, et non per Lia; né con altra saprei viver; e sosterrei, quando 'l ciel ne rappella,

girmen, con ella, in sul carro de Helia.


[Literalmente: Por Rachel eu servi, e não por Lia; nem com outra eu saberia viver; e juro que, quando o céu me chamar, irei com ela no carro de Hélia].


Biblicamente, não foram sete anos e mais sete, mas sete anos e mais sete... semanas. Petrarca não menciona anos e semanas. Camões hiperboliza o tempo desse servir por amor. E o narrador de Sete anos e mais sete se mantém na linha camoniana, incrustando o numeral "sete" no conto inteiro, hiperbolizando cabalisticamente a narrativa, que se fecha em um sonho sem fim (lembremo-nos que, ainda conforme as páginas da Bíblia, Jesus nos mandou perdoar setenta vezes sete vezes para, hiperbolicamente, significar o amor infinito que perdoa por amor do amado!)


Mas o genial também surge no conto, pela inversão da figura da fada-madrinha, mais madrinha do rei do que da princesa. Sim! O artifício mágico de pôr a mocinha para dormir afasta os amantes, ao invés de reuni-los em um final feliz... quer dizer, no final a magia é usada a favor dos prejudicados. E sem o concurso da fada, pois o príncipe é quem se põe a dormir para, em sonhos, encontrar sua escolhida e com ela ser feliz - digamos - " setenta vezes sete anos". Deixo o conto para vocês apreciarem, uma joia do contar mais do que uma peça anedótica: literariamente, é o discurso que, ordenando os recursos da língua e dos textos já ditos, interessa e permite sempre colher uma nova rosa ou botão do exuberante jardim da leitura. Ah! E o poder de uma peça literária é tal, que inspira peças musicais. Daí, aproveito também para aqui deixar um brinde do soneto de Camões numa composição musical interpretada por Amália Rodrigues! Espero que gostem... do conto e da canção!

SETE ANOS E MAIS SETE (Marina Colasanti)

Era uma vez um rei que tinha uma filha. Não tinha duas, tinha uma, e como só tinha essa gostava dela mais do que de qualquer outra.

A princesa também gostava muito do pai, mais do que de qualquer outro, até o dia em que chegou o príncipe. Aí ela gostou do príncipe mais do que de qualquer outro.

O pai, que não tinha outra para gostar, achou logo que o príncipe não servia. Mandou investigar e descobriu que o rapaz não tinha acabado os estudos, não tinha posição, e o reino dele era pobre. Era bonzinho, disseram, mas enfim, não era nenhum marido ideal para uma filha de quem o pai gosta mais do que de qualquer outra.

O rei então chamou a fada, madrinha da princesa. Pensaram, pensaram, e chegaram à conclusão de que o jeito melhor era botar a moça para dormir. Quem sabe, no sono sonhava com outro e se esquecia dele.

Dito e feito, deram uma bebida mágica para a jovem, que adormeceu na hora sem nem dizer boa-noite.

Deitaram a moça numa cama enorme, num quarto enorme, dentro de outro quarto enorme, aonde se chegava por um corredor enorme. Sete portas enormes escondiam a entrada pequena do enorme corredor. Cavaram sete fossos ao redor do castelo. Plantaram sete trepadeiras nos sete cantos do castelo. E puseram sete guardas.

O príncipe, ao saber que sua bela dormia por obra de magia, e que pensavam assim afastá-la dele, não teve dúvidas. Mandou construir um castelo com sete fossos e sete plantas. Deitou-se numa cama enorme, num quarto enorme, aonde se chegava por um corredor enorme disfarçado por sete enormes portas e começou a dormir.

Sete anos se passaram e mais sete. As plantas cresceram ao redor. Os guardas desapareceram debaixo das plantas. As aranhas teceram cortinados de prata ao redor das camas, nas salas enormes, nos enormes corredores. E os príncipes dormiram nos seus casulos.

Mas a princesa não sonhou com ninguém a não ser com o príncipe. De manhã sonhava que o via debaixo da sua janela tocando alaúde. De tarde sonhava que sentavam na varanda e que ele brincava com o falcão e com os cães enquanto ela bordava no bastidor. E de noite sonhava que a Lua ia alta e que as aranhas teciam sobre o seu sono.

E o príncipe não sonhou com ninguém a não ser com a princesa. De manhã sonhava que via seus cabelos na janela, e que tocava alaúde para ela. De tarde sonhava que sentavam na varanda, e que ela bordava enquanto ele brincava com os cães e com o falcão. E de noite sonhava que a Lua ia alta e que as aranhas teciam.

Até o dia em que ambos sonharam que era chegada a hora de casar, e sonharam com um casamento cheio de festa e de música e de danças. E sonharam que tiveram muitos filhos e que foram muito felizes para o resto da vida.

 

Autoria de Paulo Valença



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